Na retaguarda das personagens que faltavam ter o devido crédito na Fase 4 do Marvel Cinematic Universe (MCU) estava Stephen Strange, mesmo após ter uma breve participação no último filme, Spider-Man: No Way Home (2021). Doctor Strange In The Multiverse Of Madness é a vigésima oitava produção cinematográfica do MCU, produzido pelo Marvel Studios, sob o amparo de Kevin Feige, distribuído pela Walt Disney.
Como tem sido regra, a Marvel decide apostar num realizador renomado para liderar um dos seus projetos. Sam Raimi, que sempre se mostrou um ávido leitor de comics, tem agora a tarefa de trazer o sobrenatural e horror para uma fórmula ininterrupta. Conhecido pela realização da primeira trilogia de Spider-Man (2002-2007) e, acima de tudo, pelos três filmes de The Evil Dead (1981-1992), Raimi está mais do que em casa aqui.
A narrativa iniciada na primeira longa-metragem retoma com a personagem de Christine Palmer (Rachel McAdams) num casamento, meses a seguir ao blip, onde Doctor Strange (Benedict Cumberbatch) ainda abalado com a realidade da sua vida pessoal, se vê numa nova encruzilhada. Terá de unir novamente forças com Wong (Benedict Wong), o atual Sorcerer Supreme, para desvendar o mistério que envolve o súbito aparecimento da novata, mas poderosa, America Chavez (Xochitl Gomez), que consegue viajar entre universos.
O mestre das artes místicas recorre em pedido de ajuda à exilada Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), porém, acaba por ficar com mais dúvidas do que respostas, e inesperadamente vê-se como o único protetor de Chavez face às ameaças que anseiam roubar os seus poderes. Ao redor desta história, Strange enfrentará um dos seus maiores obstáculos, ele próprio, simultaneamente que Wanda se estabelece como uma das figuras mais sinistras e trágicas da Marvel no cinema.
Uma coisa que fica logo estampado é que com o acumular do catálogo de filmes e séries desta gigante do entretimento, torna-se um requisito, praticamente obrigatório para entender a obra na totalidade, ter visto em antemão WandaVision (2021) e algumas passagens de Marvel’s What If…? (2021). Já não basta ter visto os últimos filmes no catálogo, muito menos só o antecedente de 2016. Prova irrefutável que quem não acompanhar de perto tudo o que vai sendo lançado, acabará por ficar de lado, o que acaba por ser tanto positivo como negativo, dependendo da perspetiva.
De tal modo dependente desta série, que Wanda é praticamente uma co-protagonista ao lado de Stephen. Pouca informação é dada ao espetador que complete todo o arco de desenvolvimento que a mesma passou anteriormente. E por falar nela, tal como Thor Ragnarok (2017) foi capaz de tornar o Deus do Trovão um personagem que eu conseguisse gostar, Kevin Feige ao entregar o argumento a Raimi, fez surtiu o mesmo efeito comigo com a personagem de Wanda nesta sequela. Elizabeth Olsen domina todo o espaço de antena que lhe é dada.
Tem uma atuação ilustre e muito crível, fugindo até ao que esperamos de um típico blockbuster do MCU. Fecha a curva de construção da Scarlet Witch, que agora está totalmente corrompida pelo Darkhold. E sem qualquer tipo de entraves, o MCU transforma a Wanda à imagem do estilo de horror que Raimi concebeu com a criatura demoníaca que persegue Ash em The Evil Dead 2 (1987). Falando nisso, há toda uma enorme semelhança em vários níveis com esta franquia, que aqui é surpreendentemente homenageada.
Claro, que nunca nas mesmas proporções demoníacas, pois trata-se um filme com uma indicação etária acessível, contudo, arrisca-se sucessivas vezes com jumpscares e momentos de tirar o fôlego. É tanto uma ameaça física, em termos de duelo de poderes, como uma assombração que mexe com o psicológico dos heróis. De outro ponto de vista, nos momentos em que tenta se aproximar de um filme da Marvel, repete determinados percalços, que não o permitem distanciar dos demais. Nomeadamente, a cadência, que é muito oscilante, não estando bem doseada do início ao fim.
Reverte em bombardeamento excessivo de informação e outros, em que subitamente, pouca explicação é dada para uma cena de ação que acabou de se iniciar. Por vezes, o espetáculo visual daí provocado compensa e é refrescante, outra vezes, o filme poderia reduzir a adrenalina e explorar um pouco mais das motivações das personagens e o seu papel no conflito. Wong e Chavez não conseguem estar a par da atuação do duo Cumberbatch e Olsen. São mais sacrificados em tempo de ecrã, bem como naquilo que era esperado das suas personagens.
Até Christine, que embora os argumentistas tenham tido algum zelo, fica muito distante da proposta do filme de origem de há seis anos. Ainda que a narrativa o justifique com a questão transcendente de existirem várias versões no multiverso, faz-me crer que Doctor Strange In The Multiverse Of Madness tenta ser muito mais sobre o MCU, do que uma continuação da jornada pessoal de Stephen Strange. Mesmo até as obras que optam por esta via, têm muito mais profundida neste sentido do que aqui. Tais situações ficam guardadas para bem no começo do filme e quase no clímax.
Se Chloé Zhao em Eternals (2021) aparece um pouco tímida no que toca à experiência que montou, então Raimi consegue total controlo da sua obra. Expõe todo o conhecimento acumulado nos seus anos ausentes na realização. É palpável a presença do mesmo em todos os aspetos que compõem esta sequela, quer na identidade visual e sonora, na composição das cenas e, com especial atenção, na fotografia. O filme é arrojado, desafia as normas até então criadas, e edifica-o como o filme mais autoral e exponencialmente atrevido do MCU.
A cinematografia ficou a cargo de John Mathieson, que trabalhou em Gladiator (2000) e Logan (2017), o qual deu uso a múltiplos estilos visuais, indo na onda dos momentos em que são feitas várias viagens no multiverso. Há toda uma montagem muito chamativa e interessante nestas circunstâncias, contudo, fica reduzida a um segmento curto. Foi perdido um momento único, onde se poderia ter ido bem mais longe e quebrado as regras, já que estamos a falar do multiverso da loucura, não é?
E mesmo a nível narrativo, ainda que haja uma mão cheia de versões alternativas de Stranges e Wandas, sabem a pouco. O contraponto de se trabalhar dentro do conceito multiverso é que o filme acaba por ser mais complicado do aquilo que deveria ser. Vai e volta com personagens, muda e alterna entre realidades, e por vezes, torna-se levemente confuso acompanhar quem é quem, ou como A chegou a B. Por vezes é até difícil desligar o cérebro, e não tentar fazer algum sentido daquilo que está a ser apresentado. Tenho de me relembrar que estou a ver algo da Marvel.
Seja como for, aquando do terceiro ato, a maioria da narrativa consegue ficar amarrada e entrega uma conclusão justa com aquilo que foi WandaVision (2021) e tudo o que levou para cá chegar. Ressalvo ainda as surpresas já habituais lá pelo meio, onde a casa mãe foi mesmo buscar ao fundo do saco para conseguir fascinar os mais curiosos. E ainda o facto de Danny Elfman, compositor de bolso de Tim Burton, ter uma participação certeira em determinados momentos que facilmente irão arrepiar muitos fãs da velha guarda desta editora de super-heróis.
Ainda que o primeiro filme seja mais compacto e resistente à passagem do tempo, agradou-me desmedidamente a marca autoral que Sam Raimi deixou em Doctor Strange In The Multiverse Of Madness. O realizador fez de sua graça, encaixando o MCU no género do horror de modo leviano, mesmo que não vá muito longe na ideia do multiverso em si. Dá a Elizabeth Olsen a sua mais bem conseguida atuação dentro da Marvel, competindo no seu pódio de melhor vilão.
Se esperam uma sequela em concordância com o estilo do primeiro, poderão sair insatisfeitos, no entanto, se estiverem suscetíveis a ver uma experiência visualmente criativa, mais dramática e recheada de vários combates místicos, então é o filme certo, e não poderia ser mais do que recomendado. Em síntese, o saldo de Doctor Strange In The Multiverse Of Madness é positivo e Raimi prova, novamente, que ter um realizador de peso a assinar o filme, faz uma diferença colossal.
Positivo:
- Atuação assombrosa de Elizabeth Olsen;
- Experiência diferente da habitual no MCU;
- Realização de Sam Raimi;
- Tom sombrio e macabro mais do que bem-vindo;
- Abundante em cenas visualmente inventivas;
- Uso da magia nas cenas de batalha;
- Cameos são uma adição interessante;
- Inúmeras homenagens a The Evil Dead;
Negativo:
- Perde a oportunidade de ir mais longe na exploração do multiverso;
- Xochitl Gomez pouco convincente no papel de America Chavez;
- Requer o acompanhamento de perto do MCU para o entendimento total do filme;
- Ritmo disperso e desequilibrado;
- Aproveitamento dos personagens secundários sacrificados em prol do escopo grandioso da história;