A Terceira Era Dourada da Televisão

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Em 2008, o lendário Robert McKee esteve presente na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa, para apresentar o Story Seminar, uma palestra mundialmente conhecida, que prepara os candidatos a guionistas para a fórmula de sucesso aplicada em Hollywood. Paradoxalmente, numa conversa paralela, McKee assumiu que o futuro da escrita não passa pelo cinema, mas pela televisão. Além de estudioso nas artes da escrita, o norte-americano, natural de Detroit, estava a prever um futuro imediato.

Não vale a pena assobiar para o lado ou ignorar o enorme elefante na sala, a televisão não é a mesma – em forma e conteúdo – e poucos têm o atrevimento de apelidar o “ecrã mágico” de “caixa idiota”. Devido à qualidade da ficção, as séries nunca assumiram um peso tão relevante na televisão e na sociedade, fidelizando públicos e desdobrando-se em géneros e estilos.

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Vince Gilligan, criador da aclamada série Breaking Bad, recebeu o Emmy de Melhor Drama, e enalteceu o prémio, não só pelo prestígio, mas pelo significado do reconhecimento num mercado audiovisual de elevada qualidade e cada vez melhor. “Este momento da televisão é histórico”, sublinhou Gilligan, e é explicado em vários factores, nomeadamente: conjuntura, cronologia e estratégia. Esta é a Terceira Era Dourada da Televisão.

A primeira Era Dourada remonta aos anos 50, do século passado, um período complicado para as produtoras, dominado pela força política que controlava a programação. Apesar da adversidade e censura, programas de cariz dramático vingaram, em parte, devido ao génio e talento de Rod Serling, Reginald Rose, Paddy Chayefsky Alfred Hitchcock. Mesmo tendo em conta um panorama inimigo da arte – os autores não estavam autorizados a arriscar – programas como Twilight Zone Alfred Hitchcock Apresenta singraram e marcaram gerações, influenciando a realidade audiovisual até aos nossos dias.

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A Segunda Era não é consensual, mas a relevância da década de 70 merece destaque, com o início do drama inteligente e adulto, no qual a história não terminava no episódio, mas no final da série. A influência de The Mary Tyler Moore Show, The White Shadow, All in the Family e Maude galopou a década seguinte, e foi absorvida pela série mais importante dos anos 80A Balada de Hill Street.

É fácil identificar o período da Terceira Era Dourada – agora -, mas várias séries antecipavam a explosão da qualidade. Existem indícios em Twin Peaks ou The X-Files, mas a unanimidade reúne-se em redor de Os Sopranos. A série protagonizada por James Gandolfini estabeleceu um padrão de qualidade, que não existia até então, e assumiu-se enquanto estilo que a fase actual aperfeiçoou.

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A ponte cronológica entre as Eras permite avaliar a evolução e as etapas que culminaram no apogeu do panorama actual. O maior investimento na produção é, evidentemente, um factor importante (os projectos tornaram-se maiores e mais atraentes), bem como o acesso a equipamentos e ferramentas tecnológicas, até então exclusivas do cinema. As produções televisivas estão mais próximas de Hollywood, como é o caso de The Walking Dead, o que eleva a bitola da qualidade e baralha a diferenciação entre os meios.

O crescimento dos canais por cabo, e consequente combate pelas audiências e subscrições, também favoreceu a qualidade das séries. As estações apelaram ao público que detém o poder de compra, que se situa entre os 18 e os 49 anos, e prefere conteúdos intelectualmente desafiantes. Outro factor que acrescentou qualidade às séries foi o recrutamento de actores e autores de Hollywood, que aceitaram o desafio por estarem insatisfeitos com a instabilidade profissional na Sétima Arte e/ou frustrados por verem os projectos negados.

As histórias também estão diferentes. Os canais no cabo têm a liberdade para explorar conteúdos maduros, um privilégio que os canais em sinal aberto não desfrutam, o que possibilita a integração de conteúdos violentos, nudez e vernáculo grosseiro. O upgrade possibilitou novas histórias e novos personagens, provenientes de realidades fragmentadas e diferentes do herói clássico.

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O cinema já não é o veículo de excelência para desenvolver personagens, o braço-de-ferro foi vencido pela televisão (embora o cinema tenha os super-heróis mais poderosos). As séries especializaram-se no drama, utilizando enredos elaborados, personagens com profundidade emocional e psicológica, fidelizando espectadores através de ganchos entre cenas, e episódios, estimulando o público com suspense e expectativa. Tudo isto em 45 minutos, e em temporadas entre os 13 e os 26 episódios.

Em televisão, o tempo para narrar uma história supera a duração de um filme, permitindo que os personagens adquiram margem para consolidar. A longevidade autoriza riscos e que a verdadeira dimensão do personagem mude de forma, revelando-se com o tempo e mediante acções/relações com outros personagens. Outra ferramenta tratada de forma diferente é a palavra. Os diálogos mudaram de estrutura, com o ritmo ditado fora do âmbito clássico  (“ponto, contraponto, ponto e contraponto, punch line ”).

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Retomando à questão dos personagens, a televisão prefere séries com personagens icónicos, que se impõe no imaginário da cultura moderna. Contudo, pela primeira vez, um criminoso que viola todas as leis em solo norte-americano, tornou-se simpático e empático. Porquê? Em Breaking Bad, Walter White luta contra um cancro, enfrenta problemas de afirmação social e responde à responsabilidade de sustentar a família (uma realidade que pode existir em qualquer lar). Em nome da necessidade primária da sobrevivência, Walter White mente, manipula e mata, conduzindo um homem banal ao título de barão da droga.

O público afeiçoa-se a personagens fortes e enigmáticos, com decisões incertas, que escapam da performance do herói clássico. Esta dualidade permite ao autor experimentar novos plots na história e aplicar twists inesperados.

Em outras Eras, o vilão nunca seria o protagonista de uma história, mas a Terceira Era demonstrou que a moral alternativa também é dramatizável. Uma história contada do ponto de vista do criminoso oferece perspectivas dúbias do mal e do bem, e a dualidade de uma vida secreta exige um contexto mais rico para justificar as acções. Como diria o escritor Steven Johnson, “Tudo o que é mau, é bom para ti”.

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Embora o público e a Terceira Era Dourada estejam em lua-de-mel, há uma corrente que defende a nocividade das novas séries. Os argumentos não são os mesmos que responsabilizavam os reality shows de empobrecimento intelectual da população, mas a corrente lamenta a fragilidade das story-lines nas séries, reduzidas a crimes e violência, assentes em vampiros, droga, zombiesgangsters, assassinos em série ou o “tipo que age de acordo com as próprias regras”. Será o sucesso destas premissas, resultado de um público viciado?

Há 15 anos atrás, assumir que “não vemos televisão” atribuía-nos uma espécie de superioridade moral. Mas hoje, as conversas nas redes sociais e nos grupos de pertença afunilam, várias vezes, para a experiência vivida durante o visionamento de Breaking Bad, Mad Men, Game of Thrones The Walking Dead. Tal merece uma reflexão e a compreensão do peso de uma série, comparativamente à plataforma de construção cognitiva por excelência: o livro. Considerando Guerra e Paz, um dos maiores romances da literatura, convém referir que a obra é composta por 1400 páginas e 587,287 palavras (na versão inglesa). Se necessitamos de um minuto para ler 150 palavras, necessitamos de 65 horas e 15 minutos para fechar o livro. Uma obra invulgarmente extensa, mas, por mais estranho que pareça, exige menos 24 horas do que a série completa de LOST, cujas temporadas completas ascendem aos 3 dias de duração. A pergunta é relevante, o que é mais recompensador? Ver a série LOST ou ler Guerra e Paz?

No contexto social, para manter uma conversa sobre um produto audiovisual, não basta ver um filme com 3 horas (O Padrinho), mas acompanhar uma série com 70 horas. Já a arte de narrar uma história, pode ser identificada na capacidade para construir e desenvolver personagens em pouco tempo, e remeter o espectador para uma reflexão pós-filme.

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Retomando o processo cronológico, a Terceira Era Dourada terá de acabar para dar lugar a uma nova Era, quiçá, mudar irremediavelmente o figurino. É o preço a pagar face à maior alteração desde a chegada da televisão a cores. A Internet já possui um papel importante na Terceira Era Dourada da Televisão e será a variável que irá ditar o futuro do meio. Hoje em dia, consumir um produto televisivo não funciona na lógica de “estar no ar” ou prime time, mas no neologismo “stream“. Um produto de televisão não é consumido aqui e agora, funciona de acordo com a intenção e disponibilidade do consumidor, no qual, a  tecnologia desempenha um papel fundamental, permitindo que o conteúdo seja gravado, comprado em formato físico ou gasoso, pirateado e/ou acedido em qualquer lugar, momento e plataforma.

Era Digital não tem fronteiras ou limites, disponibiliza conteúdos à velocidade de dois clicks. A Internet não colocou o ponto final na televisão, como foi anunciado, mas transformou a televisão numa plataforma multimédia, com informação armazenada, que se adapta às exigências do utilizador, oferecendo novos conceitos e métodos de utilização (vídeo on-demand).

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Netflix é um caso incontornável na questão da Internet, tendo o mesmo impacto do Napster na música, embora numa lógica diferente de negócio. A Netflix revolucionou o conceito de programação, permitindo o acesso e compra de conteúdos online. É líder de mercado (iTunes e Amazon Prime são a concorrência) e possui 38 milhões de subscritores (a crescer). A Netflix já desenvolve os próprios conteúdos, encoraja a produção independente e procura novos talentos.

Nos Emmys de 2013, a Netflix fez história, alcançando 14 nomeações para diferentes categorias de televisão, notável para uma plataforma que não é uma estação. A série House of Cards (realizada por David Fincher) encantou os jurados, e mereceu reconhecimento pelo complexo drama político. O próximo grande projecto será em coautoria com a Marvel, e trará ao pequeno ecrã alguns super-heróis populares, nomeadamente: DemolidorPunho de FerroLuke Cage e Jessica Jones.

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Televisão é o meio dominante no entretenimento para graúdos, que faz sentir a força nas nossas discussões sociais, na interpretação do quotidiano e nas experiências cognitivas. A Televisão não é uma plataforma menor (esse lugar está ocupado pelo Youtube), e, segundo Terence Winter produtor executivo da HBO, a nova televisão gosta de “correr riscos e apelar a um público mais inteligente, comprometido com a qualidade e que aprecia desafios”. A Televisão adquiriu identidade própria enquanto forma de arte, superando o cinema na construção de personagens e nas etapas do enredo. Segundo Hans Petersen, a Televisão oferece a nova Arte Narrativa.

As séries de televisão da Terceira Era Dourada são sofisticadas, com histórias estruturadas em várias camadas e diluídas em diferentes personagens. Efectivamente, a questão da duração é pertinente, afinal, se o espectador está “engatado” na série, está à mercê dos produtores televisivos e das “gingas” do proveito financeiro da estação. Para quem não passa sem séries, o grande problema da televisão actual é a quantidade de produtos com qualidade, o que obriga a uma selecção e respectiva alienação de produtos que merecem atenção.

 

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