Análise – The Batman

Com mais de 80 anos de presença no mundo do entretenimento, a marca Batman provou ser um peso pesado, conseguindo manter-se viva até aos dias de hoje. Desde filmes, séries animadas, até aos videojogos, que sempre existiu vontade de continuar o legado da personagem e reinventá-la das mais diversas formas. The Batman (2022), realizado por Matt Reeves, produzido e distribuído pelas Warner Bros Pictures, é mais nova faceta do vigilante encapuzado da DC Comics.

O sucesso da trilogia de Christopher Nolan e o desagrado da escassa versão de Zack Snyder, tornou The Batman (2022) um dos filmes mais esperados e desejados dos últimos tempos. Cada adaptação trouxe algo de novo para cima da mesa, no entanto, a vertente de detetive nunca foi explorada a fundo em live-action. Aqui, com claras inspirações em Batman: The Long Halloween (1996) e Batman Year One (1987), isso é finalmente possível. A Warner Bros teve o cuidado de, tal como fez na última trilogia, dar carta branca a Matt Reeves para expor a sua visão da personagem como desejar.

Após dois anos em atividade como vigilante, Bruce Wayne, vulgo Batman (Robert Pattinson), terá de enfrentar o seu maior desafio, pois surge um serial killer Riddler (Paul Dano), que irá colocar em cheque o status quo de tudo aquilo que dava como garantido. Desde as charadas que deixa no caminho até às vítimas envolvidas nos crimes, rapidamente se percebe que se trata de uma conspiração muito maior que envolve toda a cidade de Gotham. Desde a corrupção política à degradação da sociedade civil que The Batman (2022) é uma aposta crua e pertinente, ficando lado a lado com Joker (2019) neste aspecto.

No meio do desenrolar da investigação, o protagonista contará com o auxílio do tenente da GCPD, James Gordon (Jeffrey Wright), dos poucos incorruptíveis, e ainda do habitual mordomo Alfred (Andy Serkis). É o primeiro que se destaca mais, pois tal como em The Long Halloween (1996), ambos trabalham em conjunto, com uma dinâmica muito melhor do aquela vista anteriormente. E que investigação! É abertamente, acima de ‘filme de super-herói’, um puro thriller criminal ala Chinatown (1974) e seus semelhantes dos anos 70s. Há muito que se pedia isto, e Reeves entregou e até muito mais.

Batman sempre foi um detetive por excelência e vê-lo recorrer à dedução e à ligação entre pistas e eventos é imensamente satisfatório. Somos colocados lado a lado com o protagonista para chegar ao cerne do crime policial. Até aos últimos minutos, o filme tenta envolver o espetador com mais uma charada para decifrar, mais um mistério para resolver, mais uma ponta para amarrar. Indo beber a All the President’s Men (1976), esta produção estrutura-se como uma composição musical em crescendo, em que a tensão e os culpados começam a ficar evidentes e se dá a culminação de todas as narrativas secundárias para uma coesa resolução final.

Embora, resida no último ato, um dos dois pontos menos positivos, que se tornaram evidentes a seguir ao visionamento. Fez-me lembrar de Lord Of The Rings: Return Of The King (2003), onde seguido de um clímax perfeito, a longevidade é estendida para continuar, com múltiplas side stories, ainda mais a principal. Claro, no meu caso, quanto mais melhor, por mim facilmente via um director cut de seis horas, mas falando de forma objetiva, esta questão é notória, e arrasta o filme um pouco mais do aquilo que era necessário, podendo algum deste conteúdo ter sido deixado para pós-créditos ou até mesmo para uma eventual continuação.

Antes de abordar o elefante na sala, vou ao elenco secundário. Batman Returns (1992) apresentou-nos Catwoman e Penguin, contudo, aqui são versões completamente diferentes. São construídas para se encaixar dentro da ambientação decadente e podre de Gotham. Selina Kyle (Zoë Kravitz) é substancialmente carregada de humanidade. Não é apenas um interesse amoroso ou conveniência do guião, mas antes alguém que tem a sua própria luta pessoal e que é também, a seu jeito, uma forte aliada do protagonista. Embora tenha considerado a sua ligação muito rápida e com pouca química, acaba parcialmente justificado pelas circunstância e intensidade do momento.

Oswald Cobblepot (Colin Farrell) leva-se bem mais a sério. É um criminoso manipulador sem escrúpulos muito para lá do típico ‘vilão da vez’. Até me fez esquecer que era Farrell quem estava como interprete, do quão próximo estava às versões da banda desenhada. Soma-se Carmine Falcone (John Turturro) que tem também uma presença notável, fruto da experiência e do quão convincente o seu ator consegue transparecer ao interpretar este mafioso. Isto tudo para dizer que é um filme autoconsciente na medida certa, ainda que nunca esquecendo que se trata da mitologia do Batman, estando recheado de camadas e com bastante heterogeneidade narrativa.

Sempre que se anuncia uma produção destas, o cast do ator principal é tema de conversa. Desacreditado por muitos, devido à sua participação na infame saga Twilight (2008-2012), Robert Pattinson provou que é capaz de muito mais do que aquilo que julgavam. A sua atuação em Good Time (2017) e The Lighthouse (2019) são prova disso, e de que, neste  momento, é dos melhores atores da sua geração. Fazer de Bruce Wayne/Batman puxa muito pela capacidade de versatilidade de atuação, e sobretudo, do quão bem se conhece as nuances da personagem.

Vê-se que Pattinson fez o trabalho de casa. Entendeu aquilo que caracterizava o vigilante durante os últimos quinze anos do século passado. Por cima desta camada há também uma noção de incorporar a personalidade da figura à realidade dos dias de hoje. É colocada de lado a persona filantrópica e carismática de Bruce Wayne, e enfatiza-se o quão distante e antissocial alguém nesta situação se tornaria. Linguagem não verbal, muito através do mero olhar, e da presença imponente são o ponto de destaque nesta atuação.

Um indivíduo recluso movido pela vingança, obrigado a carregar um fardo duro do passado às costas. Isto fica mais evidente quando colocamos a personagem neste novo retrato de Gotham City. Decadência, corrupção, arquitetura gótica, chuva intensa,  cenário soturno e sombrio, tudo isto descreve e bem aquilo que é o palco de The Batman (2022) e onde toda a sua ação se desenrola. É a visão mais próxima daquilo que durante décadas tem se visto nas comics, e também a sua jeito, é um retomar da conceção de Tim Burton da cidade.

A banda sonora pelas mãos de Michael Giacchino evoca todo o misticismo da série animada clássica do anos 90s, e busca trazer um tom carregado e denso à ação. Dei por mim a revisitá-la várias vezes após o visionamento. É de louvar o quão bem se encaixa nas cenas, servindo até como muleta da ambientação geral da obra. Destaco a música tema principal, a da Catwoman, e sobretudo a versão mixada de Ave Maria, que é usada de forma genial num momento chave da história.

Beneficia de uma cinematografia poderosa, sendo a melhor alguma vez vista no que toca aos filmes da DC, tendo cunho de Greig Faser, que já trabalhou em Dune (2021). Mergulha o espectador numa ambientação impecável, graças à fotografia que está também no mesmo patamar de qualidade elevada. Sendo as questões técnicas dos pontos mais fortes a favor do filme, que o colocam a milhas, por exemplo, daquilo que a Marvel tem feito nos últimos anos com o MCU. O que reforça o meu ponto, de que ter um realizador autoral neste tipo de projetos, faz toda a diferença!

Se Nolan foi buscar a Heat (1995) de Michael Mann, inspiração visual para fazer The Dark Knight (2008), e Todd Phillips foi tirar a estrutura de Taxi Driver (1976) e The King Of Comedy (1982) de Martin Scorsese para fazer Joker (2019), então a realização deve muito a David Fincher por este novo filme. O enredo é exageradamente semelhante a dois filmes deste último: O Seven (1995) na forma como constrói  e desenvolve o drama criminal e até no seu desfecho. E Zodiac (2007) na maneira como caracteriza Riddler e todo o seu modus operandi.

É um vilão do seu tempo, distante da sua versão cartonizada das comics, ou até de Batman Forever (1995), com Jim Carrey no papel. É importante reforçar que no subgénero de super-heróis, ainda para mais no universo do Batman, os vilões e/ou antagonistas têm um crédito maior. São o contraponto e quem servirá de agitador de águas na narrativa, e Matt Reeves entendeu muito bem isto, entendeu como abordar a psicose de Edward Nashton.  Em 2008, a caracterização do Joker de Heath Ledger foi fruto do medo e caos provocado pelo terrorismo na sociedade americana pós 11 de Setembro. Já este Riddler é um espelho de uma realidade virtual cada vez mais perigosa, de pessoas ditas excluídas e ostracizadas da sociedade, que querem vingança a todo o custo pelas próprias mãos.

E a personagem do Batman colocada neste paradigma resulta perfeitamente. Serve mais uma vez, tal como Joker (2019), como porta de entrada para inúmeras discussões e reflexões que com certeza irão marcar os próximos tempos em torno deste filme. Tem muita simbologia, não apenas para os fãs, mas para quem presta atenção à sociedade em redor e constata os paralelismos sociais mais que palpáveis aqui. Pondo isto de parte, a família Wayne é brilhantemente retrata, fora daquele glamour e perfecionismo que outras versões cansaram-se de repetir. Foi feito algo ousado, embora não novo, e que surpreenderá muitos espetadores.

The Batman (2022) é o longa-metragem mais inspirado da personagem, com uma panóplia de influências que vão até aos videojogos. Exemplo disto, acresce Batman: The Telltale Series (2016) onde claramente se vê o entrelaçar do envolvimento e passado da família Wayne e ainda daquilo que foi a relação entre o protagonista e Catwoman. É uma mão cheia de referências para os fãs do Batman, especialmente para quem já consumiu um pouco de tudo, e está familiarizado com o longo histórico da personagem.

É até de louvar como os roteiristas conseguiram agarrar em tanta coisa distinta e a criar uma unidade tão forte e coesa, com início, meio e fim, onde tudo se interliga e tem o seu devido lugar na narrativa. Será uma fasquia elevada de superar nas duas continuações que se adivinham, nem o antigo campeão da Warner Bros conseguiu chegar tão perto disto com Batman Begins (2005). E não é preciso ir tão longe, mesmo nos pequenos detalhes, Matt Reeves conseguiu provar definitivamente que conhece melhor a personagem do que todos aqueles que já passaram pela realização deste universo. A sequência de abertura sintetiza justamente tudo aquilo que é e representa o vigilante, e o que o distingue de todos os outros contemporâneos do seu subgénero.

Talvez será cedo para afirmar isto, mas depois de alguma reflexão, The Batman (2022) é a minha adaptação/visão favorita da personagem. É o primeiro, em princípio, de três filmes, portanto as sequelas terão ainda muito por dizer, mas por agora, Matt Reeves consolidou definitivamente a personagem como a minha predileta. Foi graças a ele que este projeto foi possível, onde cada cena, cada diálogo, cada pormenor foi pensado. Poderá para muitos não ser lembrado como o melhor, embora eu discorde, mas é inegável não considerá-lo como aquele que mais arriscou.

Vou tão longe para dizer abertamente, que desde muito novo, Batman sempre foi o meu favorito (de entre as duas maiores publicadores da indústria) e ter a oportunidade de ver uma das suas maiores e melhores facetas no grande ecrã deixou-me com um sorriso na cara a cada segundo. Deixo por isso a minha honesta recomendação. Foi feito a pensar nos fãs e para os fãs. Não sei quando, nem como, chegará a sequela, mas na altura em que sair, será o filme que mais aguardarei desse ano sem a mínima dúvida.

Positivo:

  • História;
  • Mistério cativante e bem amarrado;
  • Realização de Matt Reeves;
  • Elenco luxuoso;
  • Cinematografia de excelência;
  • Atuações de Paul Dano e John Turturro;
  • Ambientação e representação de Gotham City;
  • Banda sonora primorosa;
  • Cenas de ação e coreografias;
  • Agrega uma panóplia de influências e inspirações diversas;

Negativo:

  • Alguns percalços narrativos no último ato;
  • Poderia haver maior espaço para a persona de Bruce Wayne;

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